Sobre a perda dos afetos vivos

Maria Clara
5 min readMay 5, 2021

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Que os últimos anos têm sido muito difíceis, a gente já sabe. Todo dia temos visto um pouco mais dos nossos sonhos escorrerem pelo ralo, enquanto o medo e a insegurança de viver nesse Brasil vão crescendo e crescendo. A gente vê direitos sendo atacados, a nossa biodiversidade destruída, a boiada passando, o agronegócio nadando a braçadas em terra indígena, a fome a pobreza crescendo, a ciência jogada no lixo, e a mentira e o charlatanismo correndo soltos no whatsapp e facebook dos nossos. Ir mais fundo nisso tudo nesse texto é chover no molhado; a internet está cheia de gente que sabe falar de tudo isso melhor do que eu.

Quis escrever esse texto por conta de outra perda que temos vivido, talvez mais sutil, mas tão pesada quanto todas essas outras: a perda dos afetos. Numa pandemia, muitas dessas perdas vêm da morte: um dia a pessoa está aqui e no outro não está. É uma perda terrível, dolorida, traumática… Mas também não é (só) ela que vem ocupando os meus pensamentos nos últimos dias. A perda dos afetos da qual eu falo é a perda dos afetos vivos; aquela pessoa que você convive e conhece e ama num dia e no dia seguinte já não reconhece mais. Acho que todos já passamos por uma perda dessas nos últimos anos. Quem não tem um parente de quem gostava e por quem tinha respeito, mas que nos últimos tempos abraçou o negacionismo, o discurso do ódio e a defesa do indefensável? Quem não tem um/a colega que admirava, que enchia a boca para falar sobre os absurdos do descaso com a ciência, da importância de ouvir os cientistas, mas que saiu distribuindo coronavírus para todo lado porque não conseguia deixar de juntar as amigas para o barzinho do fim de semana (e que no fim encheu a boca para dizer que não sabe como se contaminou, mas que provavelmente foi numa ida ao mercado)? Quem não teve que ler que estava destruindo a família depois de questionar um jogo de celular violento criado por bolsonaristas? Eu tive. Tudo isso aí é real; aconteceu comigo, dentro do meu círculo de pessoas.

Tudo isso vai matando os afetos em vida. Eu não sei vocês, mas eu não consigo olhar para uma pessoa da mesma forma depois de ouvir ou ler dela coisas absurdas, que ferem os outros e que são o total oposto de todos os valores que orientam a minha vida. Não dá. As coisas mudam.

Construímos a imagem que temos dos outros a partir das nossas relações e das trocas que construímos. Se temos uma imagem positiva, é porque, de alguma forma, tivemos uma relação positiva com essa pessoa, não é? Aí chega o dia em que essa/e outra/o faz ou diz algo que contradiz aquela imagem, e nosso castelo rui. Não falo aqui de todo e qualquer coisa que consideremos um erro; quem não tem um/a amigo/a que fez algo que machucou, mas que foi resolvido depois? Não. Não são esses deslizes da condição humana que fazem com que aquela imagem se despedace, mas são aqueles atos que se constroem na falta de humanidade. Homofobia é “deslize”? Misoginia é “deslize”? Menosprezar o racismo é “deslize”? Fazer pouco caso da morte dos outros é “deslize”?

Em qualquer momento e circunstância, é muito doloroso ver a imagem que tínhamos sobre uma pessoa desmoronar na nossa frente. É como um alicerce que cai e que vai derrubando outras partes da casa. Você olha para as boas lembranças que teve com essas pessoas, e de repente aquela sensação gostosa de revisitar o passado não existe mais. A gente se pergunta se aquela pessoa mudou, ou se ela foi sempre assim; e se ela foi sempre assim, então vocês nunca foram compatíveis de verdade, porque nunca se conheceram de verdade. E aquele lugar que essa pessoa ocupava no seu rol de “gente que amo, admiro e que sei que me apoiam” fica vazio. Acho até que seguimos amando essa pessoa, mas ela não é mais alguém com quem podemos contar como antes. Se a minha vida se constrói em cima de valores que aquela pessoa abomina, como compartilhar meus medos, ideias, derrotas e conquistas com ela? Se o que eu considero certo, essa pessoa considera errado, e vice e versa, como esperar que esta/e outra/o fique feliz quando faço, digo, vivo aquilo que, segundo os meus valores, é correto?

O que os últimos anos têm feito é potencializar esse ruir das imagens, esvaziando prateleiras inteiras do nosso rol de amor e segurança num piscar de olhos. Não são duas ou três pessoas que se vão, são várias: de repente, a gente olha ao redor e vê tantos dos nossos defendendo absurdos, menosprezando dores. E aquela dor de perder um afeto em vida, além de se multiplicar em dezenas, não tem tempo para sarar direito, porque todo dia os afetos perdidos estão ali, agarrados no ódio, reproduzindo o ódio. Do lado de cá, fica aquela mistura de tristeza e incompreensão que paralisa. E a gente vai perdendo um pouco a fé na humanidade.

Nesse perder de fé, as pontes vão ruindo. Ou talvez o ruir das pontes tenha sido o primeiro passo dessa bagunça toda, e a gente nem reparou. Eu não sei mais o que se passa “do lado de lá”: será que sofrem como eu pelos afetos perdidos? Será que o meu luto por tudo que está acontecendo é pelo menos parecido com o luto delas/es? Será que elas/es também têm os mesmos medos e inseguranças que eu tenho? Será que elas/es se questionam sobre os sentimentos e o sofrimento das pessoas “do lado de cá” (detesto essa terminologia, mas acho que vocês entendem a necessidade de usá-la aqui), como estou tentando fazer agora?

Eu poderia encerrar com uma reflexão sobre a necessidade de organização política e social para mudar todo esse cenário. Sobre como as contradições e divisões que sustentam esse estado de coisas são criações do modelo moderno/colonial/capitalista de sociedade, que precisa disso tudo para funcionar e se reinventar. Tudo isso é verdade e, de novo, tem gente melhor preparada para analisar e explicar detalhe por detalhe como essa engrenagem funciona. Mas hoje eu estou cansada. Só cansada. Hoje eu preciso me permitir sentir esse cansaço, essa tristeza dos afetos perdidos em vida. A máquina moderno/colonial/capitalista também nos diz que o luto pelos afetos perdidos não pode ser vivido; que não podemos parar para chorar mediante o caos e a desolação, porque precisamos seguir em frente e produzir. Se é assim, talvez hoje sentir e escrever sobre essa tristeza seja o meu modo — pequeno, diminuto — de dizer “alto lá!” para esse sistema. Eu sinto. Minhas emoções não precisam estar a serviço da produtividade e nem a serviço de ninguém. Eu sinto, e sentindo me permito parar.

Se eu me permito parar por sentir, em algum momento também vou me permitir mover por sentir; e aí, sabe-se lá o que esse meu movimento pode criar? Ou ainda: dentro dessa máquina moderno/colonial/capitalista, sabe-se lá o que esse movimento pode fazer ruir? Muita coisa, eu espero. Mas esses são textos que virão num dia de menos tristeza. Já vivi esses dias, lembro deles, sei que existem, e tenho aprendido que voltam mais rápido quando a gente se permite falar sobre o que nos entristece. Até lá, aguardemos.

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Maria Clara

aquilo que vem quando o sentimento não cabe na cabeça nem o pensamento no coração ou vice e versa.